terça-feira, 17 de junho de 2008

João Quaresma dá o testemunho do avô em Moçambique


Caro Nuno, eu sei isso muito bem. O meu bisavô cumpriu duas comissões em Moçambique (1914-15 e 1917-18). O governo queria fazer bonita figura em África, pensando que eram favas contadas contra uma tropa alemã cercada por mar e por terra.*

O que mais importava nos oficiais era se eram de confiança política da república (como era o meu bisavô) e se conseguiam manter a disciplina nas tropas (idem) para evitar restaurações da Monarquia em África. Os que tinham mais do que isso, ou seja, que de facto eram oficiais militarmente bem formados e com provas de competência foram mandados logo em 1914, para recolher ensinamentos, porque praticamente todos os oficiais com experiência da guerra de 1895 eram monárquicos e estavam no exílio. Infelizmente os comandantes mandados de Lisboa eram acima de tudo políticos fardados, que recusavam dar ouvidos às recomendações dos subalternos com experiência para que a sua autoridade não fosse questionada. Além do mais, o general Sousa Rosa (no comando em 1917-18) estava comprado pelos alemães. No rescaldo da ofensiva alemã, o meu bisavô e os seus oficiais, para além dos comandantes de outros batalhões denunciaram isso mesmo a Lisboa. Foram todos presos (isto em plena guerra) e o meu bisavô esteve seis meses na prisão militar de Lourenço Marques, onde só estava autorizado a comer capim (logo ele que não era uma pessoa nada saudável). Foi autênticamente deixado para morrer. 
No terreno, na maior parte do tempo as tropas estavam abandonadas à sua sorte, a informação não circulava. 
Em Negomano, o meu bisavô foi avisado que o grosso do Exército Alemão vinha na sua direcção (4500 homens comandados pelo próprio Von Lettow Vorbeck) com apenas algumas horas de aviso e apenas por que o destacamento de reconhecimento que mandou atravessar o Rovuma e penetrar em território alemão encontrou um oficial inglês, um dos poucos sobreviventes de todo um regimento de cavalaria inglesa que tinha sido aniquilado na véspera. De Porto Amélia (onde estava o comando das operações) não deram o mínimo aviso. Ele comandava a chamada Coluna Quaresma (um batalhão reforçado, cerca de 800 homens) que se preparava para atravessar o Rovuma para atacar os alemães pelo flanco. Numa posição não-preparada, em grande inferioridade numérica contra tropas já com três anos de experiência de combate, sofre um ataque esmagador. Mas ainda conseguiu mandar avisar a coluna de Viriato Lacerda que, devidamente entrincheirada na Serra Mecula, dias mais tarde resistiu heroicamente aos alemães.A nossa infantaria estava bem armada, ainda que ao longo do tempo fosse recebendo armamento diferente do que já tinha (e com uma confusão de calibres diferentes). Foram usadas desde Martini-Henry e Castro-Guedes de tiro-único e Kropatschek remanescentes da guerra de 95, até Mannlicher, Mauser G98, Vergueiro 1904, Lee-Enfield e até carabinas Winchester (americanas).
Os alemães e os sul-africanos gostavam bastante das nossas Vergueiro (capturadas, abandonadas..), e usaram-nas muito.
Mas faltavam metralhadoras em maior número e sobretudo morteiros (na altura eram uma coisa muito recente), medicamentos e material médico, e até os uniformes não eram os mais próprios para o clima africano. 
Quanto ao tratamento dado pelos alemães, no caso do meu bisavô, ele e os seus homens foram tratados de forma civilizada. No acordo de cavalheiros que precedeu a libertação, em que os oficiais portugueses se comprometiam em não voltar a combater a Alemanha, Von Lettow-Vorbek abriu uma excepção para o meu bisavô, como reconhecimento da sua bravura em Negomano, concedendo-lhe que ele pudesse voltar a combater a Alemanha fora de África. Note-se na diferença de tratamento entre o inimigo e o comando português. 

*Publicado como comentário no meu post sobre a parada da Vitória (Londres, 1918), por João Quaresma no blog Estado Sentido em 17 de Junho de 2008 0:03

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