quarta-feira, 16 de abril de 2008

Relembrar Orwell (5)

«Mas tornou-se igualmente claro que o aumento global da riqueza ameaçava destruir a sociedade hierárquica - e isso, num certo sentido constituía, só por si, a destruição desta. Num mundo onde toda a gente poucas horas trabalhasse, não lhe faltasse comida, vivesse em habitações com frigorífico e casa de banho e tivesse automóvel ou mesmo avião, as formas mais óbvias e talvez mais importantes de desigualdade teriam desaparecido. No dia em que a riqueza se generalizasse, ela deixaria de conferir distinção. Sem dúvida, em abstracto, seria viável uma sociedade onde a riqueza, no sentido de posse de bens e luxos, fosse equitativamente distribuída, enquanto, por seu lado, o poder continuaria nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia manter-se estável por muito tempo. De facto, se todos tivessem igual acesso ao lazer e à segurança, a grande maioria dos seres humanos, que normalmente vivem embrutecidos pela pobreza, instruir-se-iam e aprenderiam a pensar pela sua própria cabeça; a partir daí, cedo ou tarde concluiriam que a minoria privilegiada não desempenhava qualquer função, e acabariam com ela. A longo prazo a organização hierárquica da sociedade só seria viável assentando de novo na pobreza e na ignorância.»

Esta é a pièce de résistance desta curta série. Não precisa de grandes explicações. É irónico notar como autores tidos como idealistas e que servem de base a grande parte da esquerda, como Platão (não estou a dizer que Platão era de esquerda, atenção, Platão pode ser tanto de extrema-esquerda como extrema-direita), ou Rousseau, que falaram de educação das massas e igualdade entre todos, foram eles próprios os desmontadores de tais falácias, que Orwell tão bem sumariza neste trecho.

Tudo isto se apresenta tão clarividente que chega a ser absurdo como a maioria das pessoas teima em não o entender.

2 comentários:

ana v. disse...

É extraordinária a lucidez e o sentido prático com que Orwell desmistifica a impossibilidade das utopias sociais em que todos gostamos de acreditar. Ou melhor, a possibilidade de implantar tais utopias mas a total incapacidade que temos de mantê-las como sistema vigente. 1984 e Animal Farm são dois livros arrepiantes, mas magníficos.

Pedro Fontela disse...

É uma coisa curiosa que os humanos parecem incapazes de criar utopias mas bastante capazes de criar distopias... preocupante.